O Tripeiro
7.ª Série - Ano XII / N.º 5
Maio * 1993
ALFARRABISTAS
DO PORTO
LIVRARIA
MOREIRA DA COSTA
Por
PAULO SAMUEL
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Prezado leitor: ainda se recorda da construção do Hotel Infante de Sagres? E da demolição da chamada Casa da Fábrica? A breve trecho, poderemos inclusive perguntar: onde se localizava a sede de O Comércio do Porto? E a do mais prestigiado jornal portuense, O Primeiro de Janeiro? Na verdade, com o correr dos tempos e, principalmente, devido à galopante marcha que nos impõe, no presente, o sector económico, modificando ambientes, espaços físicos, filosofias de vida e até a formação humana, a opinião pública pouco se incomoda já com os legados patrimoniais (basta reparar nas transformações operadas no coração da Cidade), e, porventura, bem menos com as considerações que possam ser expendidas por algum obscuro defensor dos valores históricos e dos principias humanistas. Ora, tal posição individual, impõe-se dizê-lo, não implica, necessariamente, uma cristalização no passado, convertendo quem assuma essa atitude num empedernido ou extemporâneo saudosista, que haja de viver de costas para o presente e de olhos fechados para o futuro. De resto, estamos em crer que esse anátema terá servido, amiúde, para intimidar aqueles que, em inesperadas circunstâncias, quiçá em momentos cruciais de tomadas de decisão, ousaram contrariar ou opor-se ao alardeado progresso social, desfraldado em hodíernas cores numa propalada política de sucesso, em que todossão convidados a alistar-se. Aliás, essas reacções contrárias ao establishment decerto só pretendiam chamar à razão — entenda-se, por regra, apelar ao raciocínio claro e reflectido —, os que, apegados a modelos sociológicos e economicistas, só vêem a multiplicação da moeda corrente, alheados de outras cotações que não sejam as estritamente bancárias ou bolsistas. Todavia, nesta posição pessoal, crítica, mas ditada por imperativos éticos, não queremos fazer tábua rasa por sobre todos os que detêm tal formação, não obstante ser difícil distinguir uns e outros, dado a generalização do processo, os sinais visíveis das |
inúmeras situações de prepotência tão
frequentes nos dias de hoje, bastando cada qual olhar em redor de si.
Afinal, parte destas observações fluíram ao sabor dos entrosamentos próprios das coisas e, neste caso particular, a propósito do percurso que o paciente bibliófilo e o intrépido investigador da História e dos Autores do passado possam escolher, para se encaminharem até à Livraria Moreira da Costa (Filha), situada na actual Rua de Avis 30, exígua ao nível do
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rés-do-chão, mas espaçosa, surpreendente pelos fundos depositados, num subsolo que se estende por debaixo do Hotel Infante de Sagres, o qual veio a ocupar, aquando da sua construção, um espaço que pertencia a esse estabelecimento, segundo afirmam os descendentes de Moreira da Costa. Situação geográfica privilegiada, diga-se, pois apesar dos diversos endereços que já ostentou, sem sair dessa compartimentação urbana, nomeadamente Travessa da Fábrica e Rua da Fábrica, permaneceu inserida num núcleo de editores e livreiros, que floresceram em ruas contíguas e largos próximos. Entre outros, refiram-se: Cruz Coutinho, Viúva Moré, Magalhães e Moniz, Joaquim Maria da Costa (todos no Largo dos Lóios), Chardron e Genelioux, Fernando Machado (Rua das Carmelitas) — se atendermos a uma época mais remota; em período recente, lavares Martins (Rua dos Clérigos), Figueirinhas e Livraria Moreira (Praça da Liberdade), Simões Lopes (Rua do Almada). O facto não passou sequer despercebido a Henrique Marques, que assinala nas suas Memórias de Um Editor (volume editado pela Liv. Central Editora de Lisboa, 1934) essa proximidade, que beneficiava então os frequentadores de livreiros e alfarrabistas. Ora, recuando até ao ano de 1902, data em que o malogrado Manuel Laranjeira editava o seu prólogo dramático, Amanhã, Sampaio Bruno tornava pública uma sua Ideia de Deus, Guerra Junqueiro poetizava A Oração ao Pão e se publicavam as Despedidas, de António Nobre, vamos encontrar um antigo caixeiro de Ernesto
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Chardron, de nome José Moreira da Costa, a tomar de trespasse uma afamada «Casa do Lopes” (alfarrabista), estabelecida nos números 46-48 da Rua da Fábrica, só não sabemos desde quando. Mudada a denominação social, o estabelecimento rumará com este homem à proa, firme na sua experiência, e cujo resultado se saldou, ao longo dos decénios, pelo quotidiano franquear das portas a quem quiser inquirir da obra rara ou do volume esgotado e imprescindível que desde há tempos se procura. Data, portanto, desse ano, a fundação da Moreira da Costa, que é, com certeza, a mais antiga casa no comércio alfarrabista portuense, e, com fortes probabilidades, em todo o país, sobretudo se atendermos ao facto de os seus proprietários, no correr do século, nunca terem sido outros fora da linha directa, familiar. Curiosamente, passa também aí a funcionar um Centro Literário, de Marinho e Costa (1904?-1907), que lançava em Julho de 1907 o primeiro «Catálogo de livros novos e usados”, publicação semestral, de distribuição gratuita, cuja capa de brochura noticiava igualmente a aceitação de consignações na Livraria, com 20% de desconto. O interesse do potencial leitor-comprador é estimulado pela explicitação do diverso tipo de obras disponíveis, estampada na frente do Catálogo. «Esta Casa prima em ter sempre o sortido mais completo de obras sobre Literatura, Direito, Teologia e Medicina. Livros escolares, romances, poesias, viagens, etc., etc., tanto na nossa língua como na Francesa, Inglesa, Italiana, Espanhola e Latina». Texto publicitário, apelativo,
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que pouco
depois desapareceria dos subsequentes catálogos, quando a sociedade Marinho e
Costa desaparece para dar lugar à sigla comercial «Moreira da Costa (Antigo
Centro Literário)”. Na realidade, pouco ou nada conseguimos apurar dessa ligação
e cisão (acaso algum leitor de O Tripeiro conhece a história desse Centro
Literário?), nem sequer apelando para os actuais proprietários, pois não
existem, ao que parece, quaisquer papéis ou documentos alusivos a essa partilha
de interesses e de firma social. Fosse como fosse, apenas podemos confirmar,
por informações escritas, que o Centro Literário Marinho passou a ter por
sede a Rua do Almada, 215-217, e que a Livraria Moreira da Costa (Antigo Centro
Literário) passa a divulgar, por volta de 1909, a existência de oficinas de
impressão e composição, recebendo encomendas para todo o género de
trabalhos tipográficos, orgulhando-se de possuir «o mais moderno maquinismo e
tipos de fantasia dos principais fabricantes alemães, franceses, italianos,
etc.».
O segundo Catálogo está datado de Maio de 1908, mantendo em tudo o aspecto gráfico do anterior, mudando somente o nome da Casa, que passa a ser daí em diante: Moreira da Costa. No mesmo ano, decorridos dois meses sobre a saída desse boletim, eis que o estabelecimento aparece como um dos primeiros anunciantes da revista O Tripeiro, logo no número 2 (Ano I, série I), de 10 de Julho de 1908, página 18. Consequência de residir próximo do local (Rua da Fábrica, 39) o director e proprietário da revista, A. Ferreira de Faria, endereço para onde era enviada toda a correspondência? Talvez. O anúncio, de intuitos comerciais, pretendia também, a jeito de complemento, esclarecer qual a variedade de trabalho de que se ocupava a Moreira da Costa, nótula que será depois transcrita no próprio Catálogo, na contracapa brochada, a partir do número 3, relativo a Dezembro de 1909, o qual traz alterado o endereço para Travessa da Fábrica, 50-52. Aqui está a sua reprodução, em ortografia actualizada: «Compra e vende livros em todas as línguas e ciências; pequenas e grandes quantidades, tanto no Porto como na província. Variado sortido em livros clássicos, literatura portuguesa, romances, poesia, Camoneana, religião, direito e teologia, em espanhol, francês, inglês, latim, etc.» E que espécie de livros figuravam, nessa época, nesses bem elaborados Catálogos que eram procurados e lidos com atenção por abastados burgueses, homens de profissões liberais, letrados e artistas, enfim, por quantos nutriam vivo interesse por livros novos ou antigos? Para satisfazer a curiosidade do leitor, respigámos, sem qualquer critério selectivo, para não dizer ao acaso, alguns verbetes do Catálogo n.º 3, distribuído em Dezembro de 1909: |
O Bardo, jornal. de poesias ineditas, redigido por F. X. de Novaes e A. P. Caldas, publicado desde Março de 1852 a Março de 1853, in-8.º enc. .............. 800 reis. O
Douro, illustrado, album do rio Douro e paiz vinhateiro, contendo:
Introducçao historia e descriptiva do paz vinhateiro, discripção
das Les Femmes de H. de Balzac, types, caractères et portraits illustrés de quatorze magnifiques portraits sur acier dessins de G. Staal. Paris. s./d. vol. in-4º enc. .............. 1$000 O Monopolio da sciencia official, discussão d'um problema politico, por Domingos Tarrozo. Porto, 1888, vol. de 156 pag. in-8º br. .............. 200 réis Novo
almocreve das petas livro alegre e folgasão no gosto do antigo
almocreve das petas do celebre José Daniel Rodrigues da Costa, por Joaquim José
Bordallo e Luiz de Arauj o. Lisboa, 1871, 2 vol. in-4.º enc. |
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Philippica portugueza contra la invectiva Castellana a El-rey nuestro
señor Don Joan el IV, por el P. M. Fr. Francisco de S. Agostin. Lisboa, año de 1645, (com frontispicio á
penna muito bem imitado). Este exemplar
pertenceu ao Eminente escriptor Camillo Castello Branco e tem a sua rubrica,
in-4.º enc. .............. 1$200
A Praga, rogada nas escadas da forca, romance por Camillo Castello Branco. Porto,
s./d., in-12 br. ..............
200 réis
El Quemadero de la cruz, victimas sacrificadas O Tripeiro
magnifico repositorio de noticias portucalenses. O obra mais importante para o
estudo da historia da cidade do Porto. Collaboração distincta e interessantes
gravuras. Indisoensavel em todas as estantes. 1.º volume, em brochura: 1$ 800,
cartonado: 2$000; assignatura:
por semestre, 700 réis (18 numeros). N.º avulso: 40 réis. Atala,
por Chateaubriand, desenhos de Gustavo Dorê, tradução de Guilherme Braga (segunda
edição de luxo). Porto, 1894, vol. foIio cart.
estado de novo, preço primitivo 6$000: ..............
2$000 Estas, algumas das muitas obras, catalogadas do n.º 1502 a 2067, de que se compunha esse terceiro Catálogo da Moreira da Costa, que os continuará a publicar com regularidade. Por volta de 1923, pagando de renda 7$00, a Livraria tinha adquirido certa notoriedade, sendo frequentada por um escol de bibliófilos, conhecidas figuras da Cidade e da capital, que aí acorrem na busca de raridades e primeiras edições. E o caso dos Condes de Aurora e de Alvelos, do professor e geógrafo João Soares, de Alfonso Cassuto, Leonardo Coimbra e Teixeira Rêgo e grande parte dos professores das Escolas de Belas-Artes, Politécnica e Faculdade de Letras. Em 1927, ocorre o falecimento de José Moreira da Costa, altura em que sua filha, Elisa Duarte da Costa Ferreira Dias, assume a condução da Livraria e do negócio alfarrabista. Habituada a esse trabalho pelo convívio com os clientes e, principalmente, pela experiência adquirida junto do pai, Elisa Costa Dias depressa se torna a grande empreendedora dessa Casa, projectando-a com êxito, revelando-se no decorrer dos anos uma verdadeira especialista do livro usado e antigo, iniciando, inclusive, muitos livreiros, que se vieram a estabelecer e a distinguir nesta actividade comercial que o Porto sempre acarinhou. O estabelecimento passa então |
a denominar-se Livraria Moreira da Costa (Filha), tal qual se pode ainda hoje ler, nos painéis colocados à entrada. Além da porta aberta e da distribuição gratuita de boletins, a Livraria Moreira da Costa (Filha) procura acompanhar o ritmo do tempo e beneficiar de novas acções comerciais. Assim, passa a ser presença habitual nas Feiras do Livro do Porto, desde 1931, quando instaladas na Praça da Liberdade, e só se refira quando o certame é deslocado para a Praça Humberto Delgado, vários anos depois. O seu destaque nessas Feiras do Livro pode ser avaliado pelo modo como se fazia representar nesse espaço, em pavilhão próprio e em moldes singulares, como a fotografia atrás reproduzida bem documenta. Passado todo esse interregno, a Moreira da Costa regressou em 1993 à Feira do Livro do Porto, desta vez conduzida ao Pavilhão Rosa Mofa, antigo Palácio de Cristal, o que não deixa de ser curioso se soubermos que o primitivo Palácio foi destruído a favor da prática do desporto, nessa altura o hóquei em patins, para agora, volvidos poucos decénios, o Pavilhão Desportivo, inaugurado há dois anos, dar lugar à introdução no próprio recinto de uma iniciativa cultural tão importante como a Feira do Livro. Os anos 30, 40 e 50 são o período de maior renome da Moreira da Costa (Filha). Em particular, a familiaridade e saber da proprietária da Livraria permite mesmo A Filha de Moreira da Costa, D. Elisa Duarte da Costa Ferreira Dias, grande impulsionadora do movimento livreiro e alfarrabista na Cidade do Porto.
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a formação de tertúlias, como a dos camilianistas, na qual se distinguiu o Eng. Ávila Perez. Os fundos relativos a obras de Camilo e camiliana atingem elevada expressão, a tal ponto que, transcorridos alguns anos, a Câmara Municipal de Matosinhos adquire para a sua Biblioteca um lote magnífico de edições de Camilo, incluindo as suas primícias literárias,1.ªs edições e importantes estudos sobre o notável romancista. E será quase por «imposição» dessa tertúlia que Elisa Duarte Costa Dias toma a iniciativa de editar, numa tiragem de 50 exemplares numerados e rubricados, o romance de Camilo, A Infanta Capelista, obra essa raríssima, que não podia deixar de figurar nas bibliotecas dos mais aficcionados leitores do genial escritor. Essa edição facsimilada, com data de 1952, ficará rodeada de viva polémica, participada por destacadas figuras da imprensa e dos meios cultos, pois seria impugnada por um pretenso familiar de Camilo, que requeria direitos de propriedade sobre as reedições. Não provado em tribunal, o assunto acabaria esquecido, a nível dos autos tribunicios, só lembrado ou comentado em artigos que eventualmente tratem do historial das obras camilianas. Após o falecimento da filha de Moreira da Costa, a 12 de Setembro de 1965, o património familiar passa para as mãos de Maria Elisa Duarte Ferreira Dias Gonçalves, que continuará a tradição no ramo do negócio dos livros usados e antigos. Os habituais visitantes têm outros nomes, como Vitorino Nemésio, Alexandre Pinheiro Torres, Ângelo César, Alberto de Serpa, ... Em 1989, os boletins da Livraria Moreira da Costa passam a ser informatizados. Dois anos depois, a 28 de Julho, morre Maria Elisa Duarte, passando o estabelecimento para a posse dos actuais proprietários, Rui Manuel Ferreira Dias Gonçalves, Isabel de Fátima Dias Gonçalves Carneiro e Ângelo César Carneiro, os descendentes que, nessa hora, tomaram a decisão de prosseguir com os destinos da Livraria. A apoiá-los, o jovem Miguel Carneiro, cuja experiência neste domínio — fruto de um contacto muito estreito com a avó — não deixa de ser importante.
Em Janeiro de 1992, ostentando o ex-libris «Mesmo velho [o livro] é um
bom amigo», surge, numa nova série, o 1.º Catálogo de livros seleccionados,
raros, esgotados, curiosos da Livraria Moreira da Costa, organizado pelos
novos donos. Desse catálogo, podemos salientar alguns livros como:
E. A. de Bettencourt, Descobrimentos, Guerras e
Conquistas dos Portugueses em Terras do Ultramar nos séculos XV e XVI por... Lith.
Matta & Comp., 1881-1882. In-4.º
gr. de XVI-420 págs. E
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Capa
de brochura da nova série de catálogos, que a Livraria Moreira da Costa (Filha) recomeçou, há pouco tempo, a
distribuir.
La Fontaine, Fábulas de...
Illustradas por Gustavo Doré. Texto portuguez
de Bocage, Couto Guerreiro, Filinto Elysio, Curvo Semedo, Costa e SiIva, Malhão, e muitos dos mais notaveis poetas modernos
de Portugal e do Brazil.- Estudos críticos por Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão e
Theophilo
Braga. Lisboa, David Corazzi (Typographia P.
Mouillot-Paris), 1886, 2 grossos vols. In-4.º
gr. E
Estas, algumas das 310 peças que figuram nesse Catálogo, que teve
continuação. Esperamos, neste momento, o quarto desta série, primeiro de 1993. Não estará nele a obra que procura? |